Já não restam dúvidas científicas de que o desenvolvimento sustentável é
o único modelo capaz de evitar a degradação em velocidade geométrica das
condições de vida e, finalmente, a inevitável extinção de várias espécies de
flora e fauna do planeta, entre as quais provavelmente a do Homo
Sapiens – isto é, eu, você e nossos descendentes. Desconfie daqueles
que se ocultam atrás de frases como “a ciência mesmo tem dúvidas sobre…”. Eles
procuram apenas um escudo para esconder sua inércia, preguiça ou covardia.
Sabemos que, para buscar a sustentabilidade, uma pessoa ou organização
deve adotar como padrão de comportamento ou gestão ser ambientalmente correta,
socialmente justa e economicamente viável – o chamado triple bottom
line, conceito formulado pelo britânico John Elkington. Sabemos também que
a busca pela sustentabilidade é uma caminhada que deve ser trilhada com início
urgente, imediato, mas final inexistente.
Então, o que faz uma pessoa, um cidadão, mobilizar-se pelo assunto ou
uma empresa adotar a sustentabilidade no universo corporativo? Não sou um
pensador estrangeiro, desses que todos ficam achando mais inteligentes do que
os brasileiros, mas entendo que fundamentalmente a diferença está numa
qualidade humana chamada generosidade –
e que a generosidade é o quarto elemento do triple bottom line.
Generosidade é a qualidade do que é generoso, pródigo, do que perdoa
facilmente, nobre, leal; a virtude de quem acrescenta algo ao próximo.
Generosas são tanto as pessoas que sentem prazer em dividir algo com
mais indivíduos, porque isso lhes fará bem (em um contexto egocêntrico), quanto
aquelas pessoas que dividirão bens tangíveis ou intangíveis com outros, sem a
necessidade de receber algo em troca. É o contrário da ganância. E isto se aplica quase que literalmente para
organizações, porque empresas não pensam: por trás delas sempre estão gestores
humanos.
No livro Princípios de Filosofia, René Descartes apresenta a
generosidade como “uma despertadora do real valor do Eu” e, ao mesmo tempo, uma
mediadora para que “a vontade se disponha a aceitar o concurso do
entendimento”. É filosófico, sim, mas é simples: a generosidade é uma qualidade
de quem coloca os interesses de terceiros no mesmo plano dos seus interesses
pessoais, para resolver um problema ou dilema que atinge a todos, que busca o
entendimento. Não é exatamente disso que uma sociedade sustentável necessita?
No campo do direito, isso se chama
“interesses difusos” e, como sabemos, os interesses difusos – aqueles próprios
do conjunto da sociedade – são constitucionalmente inalienáveis. Resumindo, a
generosidade deveria ser um dos fundamentos da sociedade brasileira, até mesmo
pelo que está escrito em nossa Constituição: é um bem inalienável. E a
ganância, o oposto da generosidade, deveria ser execrada, porque ofende
direitos constitucionais coletivos.
No mundo corporativo, a generosidade
pode ser traduzida como uma forma de altruísmo – e aqui está a razão por que
muitas empresas falam, mas poucas realmente adotam a sustentabilidade no
processo de gestão: altruísmo não combina com capitalismo selvagem, com a
famosa “lei de Gérson”, aquela de que se deve levar vantagem em tudo.
No mundo corporativo, generosidade significa uma empresa ser menos
gananciosa, tomar a decisão de reduzir um pouquinho a margem de lucro ou
aumentar em alguns meses o prazo de retorno de um investimento para ser
ambientalmente correta e socialmente justa – sem deixar de ser economicamente
viável. Significa ter a coragem de contrariar práticas de gestão, regras de
mercado, de design de produtos e de formas de concorrência
estabelecidas por força de um modelo de crescimento a qualquer custo, que já se
demonstrou completamente inviável do ponto de vista de recursos naturais e de
felicidade humana.
A generosidade é o que diferencia uma empresa
que adota critérios de sustentabilidade no modelo de gestão daquelas que dizem
que o fazem, mas deslizam na superficialidade ou praticam o greenwashing.
Generosidade corporativa significa
também compartilhar gratuitamente seu aprendizado, seu conhecimento, suas
patentes, sua força e seus recursos em nome de interesses que ultrapassam os
limites da empresa. O jornalista Dal Marcondes, da Envolverde, costuma dizer
que filantropia é dar um peixe a quem tem fome, enquanto responsabilidade
social é ensinar a pescar e sustentabilidade é preservar o rio. Pois, no
contexto da generosidade corporativa, este compartilhamento é liberar a
nascente do rio, caso ela esteja no seu terreno, e compreender a importância do
fluxo e entorno até a foz. E, além disso, é perceber o que de fato importa, em
termos coletivos, para que possa continuar existindo peixes.
Generosidade corporativa é perceber o
problema de emissões de gases do efeito estufa não apenas como um volume de
particulados em suas chaminés, mas como um assunto de interesse coletivo – e ir
além de metas de redução.
Generosidade corporativa é compreender
que não basta fazer o seu papel; é preciso mobilizar seus parceiros de negócios
e fornecedores e, para isso, poderá ser necessário ceder em aspectos antes
inegociáveis.
Mas a generosidade corporativa também
oferece vantagens e oportunidades de negócios. Alguns exemplos, já clássicos:
·
Em Bangladesh, a Danone francesa se associou a cooperativas de
trabalhadores e ao Grameen Bank para implantar 50 fábricas de iogurte de baixo
custo. Com isso, os funcionários passaram a ser sócios e consumidores ao mesmo
tempo e se consegue atender crianças subnutridas com redução de custos fixos de
produção. Marketing? Sim, e inteligente, porque o modelo só funciona se houver
redução da margem de lucro – uma opção generosa para conquistar mercado;
·
No começo dos anos 2000, a Sadia investiu na construção de dezenas de
biodigestores nas propriedades de pequenos produtores de suínos. E por que ela
fez isso, se não está no ramo de produção de energia? Porque, com esta
iniciativa, passou a evitar dezenas (talvez centenas) de multas ambientais pela
contaminação do solo com os resíduos da criação, reduziu os custos dos produtores,
que passaram a gerar sua própria energia elétrica, agregou valor à atividade
para fixar os filhos dos produtores no campo, perpetuando o fornecimento de
matéria-prima, e ainda gerou créditos de carbono! Puro negócio? Sim, mas a
generosidade está em investir “dinheiro bom” numa ideia coletiva, com prazo
longo de recuperação;
·
Evoluindo aos poucos durante os anos 1990, a Interfaceflor, empresa
norte-americana fabricante de tapetes, já está desenvolvendo produtos com 100%
de fibras recicladas a partir dos tapetes velhos de seus clientes. Ao fazer
isso, percebeu uma ótima oportunidade. Como tapete é artigo de decoração e sai
de moda, a empresa mudou o modelo de negócio: está propondo que seus clientes
não comprem seus tapetes. Como num processo de “leasing” de automóveis, as
famílias podem ficar com o produto ou trocar por outro, ao fim do pagamento. Em
12 anos, o lucro da empresa cresceu 82%, num mercado que diminuiu 30% no mesmo
período. Coragem para mudar exige generosidade
Na linha do tempo da história, a
generosidade é um dos traços da personalidade de pessoas que trouxeram
benefícios universais para a humanidade, como Mahatma Gandhi, Buda, Jesus
Cristo, Nelson Mandela, Martin Luther King, Wangari Maathai, Muhammad Yunus,
Madre Teresa de Calcutá e outros, mas também aparece em pequenos gestos de
pessoas comuns em nosso dia a dia, os quais merecem ser elogiados e replicados.
Se lhe parece complicado entender a importância da generosidade como
parte da essência da sustentabilidade, basta pensar no seu oposto, a ganância –
que é a base de quase tudo de errado em nossa sociedade. Aí com certeza você
vai concordar comigo que a generosidade realmente vai ser reconhecida um dia
como o necessário quarto elemento do triple (quadruple) bottom line.
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Este texto faz parte de uma série de
artigos de especialistas promovida pela área de Gestão Sustentável do Instituto
Ethos, cujo objetivo é subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.
Por: Rogério Ruschel
Fonte: Instituto Ethos